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Atriz e escritora Kenia Maria combate racismo e desigualdade com a arte

 Atriz, escritora e youtuber, Kenia Maria ganhou mais um título neste ano: o de primeira defensora dos direitos das mulheres negras no mundo, concedido pela ONU Mulheres do Brasil. A nomeação coloca a artista no grupo de mulheres públicas em favor da igualdade de gênero no país e, como ela mesma define, é um reconhecimento de sua história. “Desde muito cedo aprendi o que é ser mulher negra no Brasil. Esse título representa isso tudo. É uma luta constante”, afirma ao Correio.

Kenia Maria, que já esteve em Brasília para participar do Festival Latinidades (Festival da Mulher Afro Latina Americana e Caribenha), tem uma trajetória de engajamento e militância. Ela começou a se destacar no cenário cultural, após criar o canal Tá bom pra você?, no YouTube em que — em parceria com o marido Érico Brás — publica vídeos que, por meio da história de uma família, questiona a ausência dos negros na publicidade brasileira. A ideia, inclusive, ganhará uma versão teatral, Doble black. Atualmente, ela também se dedica a um canal próprio, o Tá bom pra elas, em que discute temas voltados ao público feminino, como violência doméstica e assédio sexual, e ao lançamento de seu segundo livro infantil, previsto para o segundo semestre. Ao Correio, a artista falou sobre o título da ONU Mulheres e tudo que pretende debater após a nomeação.


Você foi nomeada como a primeira defensora dos direitos das mulheres negras da ONU Mulheres. Para você, o que representa esse título?

Representa muito — praticamente um caminho de vida. Somos muitas e eu não estou só. É claro que fico lisonjeada com o cargo, mas também não só pelo status que essa nomeação traz e, sim, pelo reconhecimento da minha história. Aos 13 anos, a minha filha, Gabriela Dias, já questionava de que forma combateria o racismo dentro da arte brasileira e foi por meio dos questionamentos dela que nós duas criamos a primeira websérie brasileira protagonizada por negros, Tá bom pra você?, que questiona a ausência do negro na publicidade. Aos 18 anos, eu fiz o mesmo quando senti a necessidade de trabalhar com meninas negras do Vigário Geral, uma das favelas mais perigosas do Rio de Janeiro, à época. Nos anos 1990, o Rio estava em guerra e Vigário Geral tinha acabado de viver uma das piores violências de sua história — quando ocorreu uma chacina e morreram 21 pessoas inocentes. E a vontade de lutar pela consciência política eu também aprendi em casa, com minha mãe e minha irmã, Beatriz. Desde muito cedo aprendi o que é ser mulher negra no Brasil. Esse título representa isso tudo. É uma luta constante.


Quais são as pautas e agendas que você pretende assumir, debater e trazer à tona com esse título?

A ONU Mulheres abriu essa frente, Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, para priorizar e atender a urgência de defesa e visibilidade das mulheres negras. Estamos na década dos afrodescendentes, que também faz parte da agenda da ONU. A marcha das mulheres negras de 2015 reacendeu toda a necessidade de olhar para nós com mais atenção. Pretendo continuar com o meu coletivo, o Tá bom pra você, que há quatro anos colabora como material didático em salas de aula e discute a ausência do negro na publicidade, universidades, escolas e empresas privadas. Ainda tenho como parceiro e sócio nesse projeto o meu marido, o ator Érico Brás, que não pensa duas vezes quando o assunto é combater o racismo na publicidade e na indústria audiovisual. Como Ialorixá (mãe de santo), eu percebo a necessidade urgente de proteger as mulheres das religiões de matriz africana. O Brasil é um país laico, mas os praticantes do candomblé ainda são perseguidos. Eu me dedico à literatura infantil afro-brasileira e lanço um livro no segundo semestre de 2017. Lembrando que é um passo de cada vez. Outra pauta determinante em minha jornada é colocar na prática a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Mas que, infelizmente, ainda encontra uma série de dificuldades, uma delas é justamente a intolerância religiosa.

E hoje, qual são as principais diretrizes que pretende seguir no canal Tá bom pra você?
Continuaremos recriando peças publicitárias e vamos levar este debate para os palcos no segundo semestre por meio do espetáculo que será protagonizado por mim e pelo Érico, o stand-up Doble black. Quando recriamos as peças publicitárias, a nossa ideia era chamar a atenção para uma realidade bizarra. Somos mais de 50% da população, consumimos mais de R$ 1 trilhão por ano e não somos respeitados como consumidores para uma indústria que insiste em dizer que não existimos e que nosso dinheiro não existe. A ideia não é criticar marcas e, sim, dialogar com todo um conceito de propaganda que parece pertencer ao século 18, quando ainda nem tínhamos a televisão. Pretendemos continuar com o canal Tá bom pra você, que fala especificamente das experiências de uma família negra de classe média. A ideia é continuar provocar esse debate por meio de humor. Já o Tá bom pra elas é um canal em que eu vou trabalhar sozinha, entrevistar mulheres e discutir temas como violência doméstica, assédio sexual e a solidão da mulher negra.

Seus trabalhos sempre estiveram ligados à militância negra. Como você vê a escolha da ONU Mulheres por uma representante que de fato está inserida no contexto de forma pública?
Eu amo o que eu faço. A minha família é muito envolvida com causas sociais. Eu sou sobrinha do mestre Celso (fundador do Engenho da Rainha), sou neta do babalorixá Samuel Gama (pai de santo) e meu irmão mais velho, André Dias, desenvolve um trabalho lindo chamado Portadores do ritmo para crianças especiais. A família toda é envolvida com causas sociais.

Você foi uma das pessoas públicas a apoiar a hashtag #Mexeucomumamexeucomtodas nesses últimos dias em que vários casos de violências contra as mulheres estiveram nos noticiários. Qual é a importância das mulheres se unirem nesse momento?
O Brasil é o quinto país mais violento para uma mulher viver. A Lei Maria da Penha ajudou muito na redução da violência contra mulher. A violência contra mulheres brancas diminuiu 10% em 10 anos de lei. O movimento #mexeucomumamexeucomtodas foi um avanço e milhares de pessoas se comoveram. No entanto, nós não conseguimos a mesma comoção quando se trata de mulheres negras, que em 10 anos sofreram um aumento de 54% nos casos de violência. E isso é um fato.

Redação

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