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A difícil vida de uma atleta hermafrodita

A exemplo do que enfrenta a sul-africana Caster Semenya, campeã mundial de atletismo, judoca brasileira Edinanci Silva luta até hoje contra o preconceito por ter nascido com a anomalia, corrigida por meio de cirurgia
 

A sul-africana Caster Semenya conquistou a medalha de ouro nos 800m no Mundial de Berlim, há três meses, mas não pôde comemorar plenamente. Ela correu sob desconfiança geral. A Associação Internacional das Federações de Atletismo (Iaaf) havia anunciado que estava em andamento uma investigação para saber se ela é mesmo mulher. Assim, com apenas 18 anos, Semenya, que se submetera a um teste de feminilidade, viu sua intimidade virar alvo de especulação pública. Um jornal australiano chegou a divulgar que ela é hermafrodita, ou seja, tem características tanto do sexo masculino quanto do feminino.

Edinanci diz ter descoberto o hermafroditismo em 1996

Situação parecia viveu a brasileira Edinanci Silva. Uma das principais judocas do país em todos os tempos, ela se viu no centro de uma grande polêmica em 1996, às vésperas das Olimpíadas de Atlanta, quando tinha 19 anos. Descobriu-se hermafrodita. Tinha testículos internos, responsáveis pela produção de testosterona, hormônio masculino. Com o crescimento desses órgãos, o útero acabou atrofiado. Tanto que ela nunca menstruou. A família jamais a questionou sobre o fato, porque não se falava em questões tão íntimas em casa.

A atleta, por sua vez, não se preocupava, apesar de sempre ter desconfiado de que havia algo de errado com ela, já que desde criança era confundida com garoto. “Mas eu não ligava. Também sempre usei cabelo curto. Gosto assim”, ri ela, que esbanja gentileza e é muito querida pelos companheiros de esporte — é chamada por eles carinhosamente de Ed.

Aconselhada por médicos, foi operada, em abril daquele mesmo ano, para a retirada dos testículos e do útero. “Eles me disseram que eu corria o risco de desenvolver um câncer se não fizesse a cirurgia. Fiz por uma questão de saúde, porque de resto nunca me incomodou em nada”, conta. “As pessoas falam do fato de eu não poder ter filhos. Não é problema. Já existem tantas crianças no mundo, muitas delas abandonadas. Além disso, tenho seis sobrinhos maravilhosos. Também disseram que eu perderia um pouco da minha força, mas não senti diferença.”

De qualquer forma, se não tivesse feito a cirurgia, Edinanci não passaria num provável teste de feminilidade para as Olimpíadas. Consequentemente, não poderia competir. Uma atleta não é considerada mulher se mantiver os testículos. Isso porque a testosterona produzida por eles a deixa em vantagem em relação às concorrentes, pois aumenta a capacidade aeróbica, a metabólica, a força física e a massa muscular. Ou seja, na letra fria das normas esportivas, trata-se de um doping. Involuntário, mas doping.

Família abalada

O caso de Edinanci despertou a curiosidade geral e foi amplamente divulgado pela imprensa à época. Isso, sim, a atingiu em cheio. E não pela invasão de privacidade, apesar de a judoca ser extremamente tímida. Foi pela família que ela se ressentiu. “As pessoas acham que me abalei com a descoberta, mas a verdade é que eu já passei tanta coisa na vida que aquilo foi apenas uma migalha”, afirma ela, natural de Sousa, sertão paraibano, onde teve uma infância pobre. “O que eu senti mesmo foi pelos meus pais. Eles acabaram sofrendo muito com a forma como exploraram tudo. Me informei bastante sobre o problema e expliquei para a minha família, que entendeu o que aconteceu comigo, mas na época o sofrimento de todos foi grande.”
 

Apesar de dizer que não guarda mágoas de ninguém, a judoca fala com admiração sobre a recepção que Semenya teve ao voltar ao seu país em meio à polêmica. “Lá, ela foi tratada como heroína nacional. Comigo fizeram o maior oba-oba. Tiveram comportamento de bando. Um gritou e o resto foi atrás ”, reprova.

A aparência masculina e a grande força física costumam lhe causar percalços até hoje no judô. “Ganhando ou não medalhas, vou sempre para o teste antidoping, em qualquer competição. E tem gente que ainda vem me falar: ‘Você foi sorteada para o exame’”, ironiza. Em seguida, porém, ri da situação. “Aceito com tranquilidade. Vou fazer o quê? Se me recusar, dirão que me dopei. Já chegaram a falar até que eu usava anabolizante. Nem sabia o que era isso na época. O ruim do exame mesmo é que você tem de ficar nua na frente de uma pessoa desconhecida (uma fiscal). De resto, não me incomoda.” Apesar de tudo que já passou, Edinanci se considera uma pessoa feliz. “Me contento com muito pouco.”

Casos históricos

 

Stella Walsh
 

Ouro nos 100m rasos nas Olimpíadas de 1932 e prata nos Jogos de 1936, a polonesa despertava a desconfiança sobre sua sexualidade, mas nunca aceitou

fazer um teste de feminilidade. Somente em 1980, quando morreu, uma autópsia revelou que ela era hermafrodita.

 

Heidi Krieger
 

Atleta de lançamento de peso nos anos 1980, a alemã adquiriu características masculinas com o uso de esteroides. Quando encerrou a carreira, fez cirurgia de

mudança de sexo.

 

Shanti Soundarajan
 

A indiana perdeu a medalha de prata nos 800m rasos
 

dos Jogos Asiáticos, disputados no Catar, em 2006, após
 

ser reprovada num teste de feminilidade.

 

Érika Coimbra
 

A jogadora brasileira de vôlei (ao lado) acabou cortada do Mundial Juvenil de 1997 depois de apresentar excesso de testosterona num teste. Ela tinha má

formação do aparelho reprodutivo. Fez tratamento por um ano e retornou às competições. Conquistou a medalha de bronze com a Seleção Brasileira nos Jogos

de Sydney-2000 e atualmente joga pelo Rexona.

 

Quem é ela
 

Nome: Edinanci Fernandes da Silva
 

Nascimento: 23/8/1976 — em Sousa (PB)
 

Altura: 1,75m
 

Peso: 75kg
 

Clube: São Caetano (SP)
 

Categoria: meio-pesado

 

Participações em Olimpíadas:
 

» Atlanta-1996
 

» Sydney-2000
 

» Atenas-2004
 

» Pequim-2008

 

Principais conquistas:
 

» bicampeã pan-americana (Santo Domingo-2003 e Rio-2007)
 

» bronze nos mundiais de 1997 e de 2003
 

 

Correio Brasiliense

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